23 setembro, 2005

Histórias que merecem ser contadas

Estou no norte, onde, depois de um revigorante ano no Brasil, conto trabalhar. Estou nos arredores do Porto e para lá me dirijo bastas vezes. Confesso que fiquei estupefacto ao verificar que duas ruas, uma em S. Mamede de Infesta, Matosinhos, mesmo a chegar à famosa "circumbalaçón" (circunvalação), exactamente até à placa que faz "fronteira" com o Porto, Narciso Miranda encheu-se de bondade e resolveu presentear o povo com obras na estrada. A outra, bem perto do Mosteiro de Leça do Balio, e xactamente nas trazeiras da Feira e Santana, o Presidente da Câmara da Maia, que sucedeu a Vieira de Carvalho, e que, confesso, não lhe sei o nome, também resolveu mostrar o que vale! Fantástico. Durante anos fui assíduo rolador dessas duas estradas e já lhes conhecia as manhas todas. Como tal eram-me quase indiferentes os familiares buracos. Ou seja, se fizeram aquilo para eu votar neles, podem estar descansados, que por mim os buraquitos e desníveis podiam lá continuar.
O mais engraçado é que a obra de Narciso acaba exactamente na placa que diz S. Mamede de Infesta, ou seja, os votos do lado de lá como já não contam, ficam 100 metros de estrada para Rui Rio ou o "herói de Felgueiras" concertarem.
A propósito, e para terminar, vai uma anedota: a Fátima Felgueiras esteve dois anos no Brasil e a uns dias das eleições regressa!!!!!!!!!!!!!! Ainda há quem diga que isto não é uma anedota!
Desculpem a temática mas há histórias que não devem deixar de ser contadas.

16 setembro, 2005

A Cor da Pele entre o ontem e o amanhã



Se as farsas vicentinas se referiam a lutas entre o forte e o fraco, o bom e o mau, o pobre e o rico, o oprimido e o opressor, temas tão em voga nos principais editoriais jornalísticos do nosso tempo; temáticas outras estariam, devido à sua especificidade conjuntural, apenas em voga no “editoriais” de então.
Temáticas como a vila e a cidade, a vila e o castelo, primogenitura ou pobreza, escravatura ou alforria, parecer-nos-ão obsoletos, irreais, sem razão de ser. Talvez no mundo contemporâneo assim seja, ou assim permaneça hipocritamente escondido.
Na transição mediévico-renascentista, em Portugal, as pessoas circulavam entre o campo e a vagabundagem; o direito de primogenitura marginalizava unidades familiares; o rei, o aparelho eclesiástico e nobiliárquico, sufocavam com os seus impostos o homem rural e o homem citadino; a bondade aliava-se à estupidez enquanto a inteligência à desconfiança, ao engano e à falsa inocência.
A moral e o respeito não levavam a lugar algum, e o embuste era a salvação e o subterfúgio num mundo cruel e implacável, onde a “Leis das Espécies” assentava como uma luva.
Não se pense que as peças vicentinas reflectem apenas a comicidade, de facto eram bem metafóricas, espelhavam uma crueldade sufocante.
Inicialmente, estas “narrativas abertas”, nas quais Gil Vicente se inspirou, não procuravam criar ilusões sobre o altruísmo dos semelhantes, concedia-lhes estratégias de defesa, onde os valores morais não tinham grande importância já que Deus tratava os seus subordinados com manifestas distinções, às quais, só a morte lhes poria cobro.
Nas três farsas vicentinas em que se foca o Negro, deparamo-nos com uma anátema de valores, a defesa de anti-valores. Se na farsa “Frágua de Amor” são utilizadas ajudas sobrenaturais, era porque a realidade era mais implacável e sem misericórdia. Se no “Clérigo da Beira”, grande parte do conto se passa nas estradas era porque o direito de primogeneitura obrigava o excedente populacional a vaguear sem destino especializando-se em actividades como o roubo e o engano. O negro que aqui aparece é um bom exemplo disso, uma vez forro, apenas subsiste ludibriando os mais “inocentes”. Poder-se-á fazer uma segunda interpretação: será que um negro forro saberá governar-se? Não se comportará ele como uma criança pequena, que sem pai (o dono), só faz traquinices?
Se na farsa “Nau dos Amores” é dada às diferentes personagens-tipo a oportunidade de concretizarem as suas projecções amorosas, o negro acaba por ser marginalizado pelos próprios excluídos sociais, o que nos leva a depreender que o seu lugar na própria sociedade é colocado em causa, sendo-lhe atribuída uma condição subsocial.
Nas farsas vicentinas até o sonho era imbuído de realidade, e os mais pobres eram porém os mais cépticos em relação às formas de escapar à sua condição, uma vez que as estratificações sociais, devidamente impermeabilizadas, impediam o acesso e ascensão das classes consideradas inferiores. A única forma de um negro modificar a sua tez era através do sonho e mesmo esse com as devidas reticências, como acontece na farsa “Frágua de Amor”.
Em Portugal renascentista, o negro forro caia inevitavelmente na marginalidade, e quando não era escravo desempenhava funções profissionais consideradas inferiores pela sociedade portuguesa de então. Quando não eram carretores de imundíces, eram vendedoras de marisco de concha e legumes cozidos, ganhavam a sua vida lavando os serviços das casas mais abastadas, como prova o “Livro das Grandeza de Lisboa” do Frei Nicolau de Oliveira.
Será que esta situação ainda se mantêm, volvidos cinco séculos????????