Se as farsas vicentinas se referiam a lutas entre o forte e o fraco, o bom e o mau, o pobre e o rico, o oprimido e o opressor, temas tão em voga nos principais editoriais jornalísticos do nosso tempo; temáticas outras estariam, devido à sua especificidade conjuntural, apenas em voga no “editoriais” de então.
Temáticas como a vila e a cidade, a vila e o castelo, primogenitura ou pobreza, escravatura ou alforria, parecer-nos-ão obsoletos, irreais, sem razão de ser. Talvez no mundo contemporâneo assim seja, ou assim permaneça hipocritamente escondido.
Na transição mediévico-renascentista, em Portugal, as pessoas circulavam entre o campo e a vagabundagem; o direito de primogenitura marginalizava unidades familiares; o rei, o aparelho eclesiástico e nobiliárquico, sufocavam com os seus impostos o homem rural e o homem citadino; a bondade aliava-se à estupidez enquanto a inteligência à desconfiança, ao engano e à falsa inocência.
A moral e o respeito não levavam a lugar algum, e o embuste era a salvação e o subterfúgio num mundo cruel e implacável, onde a “Leis das Espécies” assentava como uma luva.
Não se pense que as peças vicentinas reflectem apenas a comicidade, de facto eram bem metafóricas, espelhavam uma crueldade sufocante.
Inicialmente, estas “narrativas abertas”, nas quais Gil Vicente se inspirou, não procuravam criar ilusões sobre o altruísmo dos semelhantes, concedia-lhes estratégias de defesa, onde os valores morais não tinham grande importância já que Deus tratava os seus subordinados com manifestas distinções, às quais, só a morte lhes poria cobro.
Nas três farsas vicentinas em que se foca o Negro, deparamo-nos com uma anátema de valores, a defesa de anti-valores. Se na farsa “Frágua de Amor” são utilizadas ajudas sobrenaturais, era porque a realidade era mais implacável e sem misericórdia. Se no “Clérigo da Beira”, grande parte do conto se passa nas estradas era porque o direito de primogeneitura obrigava o excedente populacional a vaguear sem destino especializando-se em actividades como o roubo e o engano. O negro que aqui aparece é um bom exemplo disso, uma vez forro, apenas subsiste ludibriando os mais “inocentes”. Poder-se-á fazer uma segunda interpretação: será que um negro forro saberá governar-se? Não se comportará ele como uma criança pequena, que sem pai (o dono), só faz traquinices?
Se na farsa “Nau dos Amores” é dada às diferentes personagens-tipo a oportunidade de concretizarem as suas projecções amorosas, o negro acaba por ser marginalizado pelos próprios excluídos sociais, o que nos leva a depreender que o seu lugar na própria sociedade é colocado em causa, sendo-lhe atribuída uma condição subsocial.
Nas farsas vicentinas até o sonho era imbuído de realidade, e os mais pobres eram porém os mais cépticos em relação às formas de escapar à sua condição, uma vez que as estratificações sociais, devidamente impermeabilizadas, impediam o acesso e ascensão das classes consideradas inferiores. A única forma de um negro modificar a sua tez era através do sonho e mesmo esse com as devidas reticências, como acontece na farsa “Frágua de Amor”.
Em Portugal renascentista, o negro forro caia inevitavelmente na marginalidade, e quando não era escravo desempenhava funções profissionais consideradas inferiores pela sociedade portuguesa de então. Quando não eram carretores de imundíces, eram vendedoras de marisco de concha e legumes cozidos, ganhavam a sua vida lavando os serviços das casas mais abastadas, como prova o “Livro das Grandeza de Lisboa” do Frei Nicolau de Oliveira.
Será que esta situação ainda se mantêm, volvidos cinco séculos????????
4 comentários:
Atracção pela Africa
Gostava de citar Alfredo Margarido que num ensaio intitulado "Tarzan: Paradigma da Branquização da Africa" escreve: «A relação branco-preto reforça as condições da dominação: os africanos chamam bwana aos europeus para quem trabalham. Termo jamais usado em sentido contrário.» E mais a seguir: «O Tarzan defende os elefantes contra os africanos, que os matam para se alimentar e para recuperar o marfim dos dentes, pelo que é natural que os mesmos elefantes ajam contra os africanos, designados como inimigos preferenciais.» Porque será que os brancos se preocupam tanto com a África? Certamente há muito que lá brilha para os olhos dos brancos, e não será somente os dentes dos africanos!
Folgo em saber que há outros como eu. Não, não estou a falar em cor de pele!
De facto, podem verificar que escrevi neste blog, em tempos, sobre o domínio branco no Brasil e quão grave é a situação sem o ser na realidade. falarei nisto no ponto 3.
Mas, pegando no que dizem o vencedor e o tarzam, deixem-me fazer as seguintes observações:
Ponto 1- "O tempo das catedrais" é um livro fabuloso, tradução de Saramago. Georges Duby consegue em poucas palavras, contudo mágicas, fazer-nos viajar pela idade média e, por exemplo, mostrar-nos como era miserável a existência do povo, que tinha até que desenterrar cadáveres para se alimentar. Vamos agora até África, hoje. Alguma diferença? Eu não noto. Ah, sim, noto! É bem pior agora, porque esta gente de cor escura não tem casa e tem que ficar em campos de refugiados, ao monte com os outros, a apanhar as doenças dos outros (ou a transmitir-lhas). Apanhar uma doença e morrer é abreviar uma angústia ainda maior, que é a vida.
Ponto 2- A dominação branca no globo é avassaladora. Pelo menos em 4 continentes o branco domina, directa ou indirectamente. Sendo talvez os menos numerosos do globo causa estranheza tanto dominio. África é um Campo de Extremínio, incomparávelmente maior que os de Hitler e Estaline. O que Hitler fez com os judeus e o que Estaline com os seus opositores é grave, mas não passa de uma ilha do Pico, no oceano Atlântico que é África.
Ponto 3 (em exlicação à afirmação sobre o Brasil)-o problema não "existe" no Brasil. Eu é que o estou a inventar, porque não tenho nada que fazer. O facto dos melhores cargos políticos, na administração, nos empregos estarem com brancos; o facto de se verem brancos com os melhores carros, nas melhores escolas, nos melhores restaurantes,as melhoores casas, são apenas poeira nos meus olhos, ou sou eu que ando à procura de algum tema para falar. Então, como estava no Brasil e via os brancos nos melhores restaurantes, nos cargos políticos não via morenos nem escuros, nos bancos raramente via um negro a trabalhar (sinal que são preguiçosos, claro), então resolvi falar disso. Só isto, nada mais.
África é uma vergonha para todos nós, os que nos interessamos minimamente com este mundo. Nem vale a pena culpar os políticos, esses pseudo-responsáveis. Esses, coitados, são uns irresponsáveis.
Portugal reconhece os seus residentes / cidadãos pretos?
Vejam o que vem a dizer Bernd Reiter, Brasileiro de origem teutónica. Investiga para H Samuels Management & Policy Center de Nova Iorque e em 2003
completou um projecto no Instituto SOCINOVA da Universidade Nova de Lisboa sobre o nacionalismo e exclusão em Portugal. As suas conclusões se encontram publicadas em «Race & Class», July 2005. Cá deixo algumas delas no seu texto original em inglês:
1. Portugal has failed to recognise the existence within its borders of a black community and discrimination and exclusion continue to this day.
2. Although the Portuguese constitution of 1976 defined citiizenship explicitly (Article 4), the guarantee of dejure access to political and civil rights is diluted by de facto discrimination against foreign-looking citizens.
3. Non-whites are not new in Portugal, especially Lisbon. Between 1441 and 1505, some 150,000 African slaves were brought to Portugal, then with a
population of about 1 million. In 1776, slave imports were outlawed but slavery remained legal until 1836 and practised until the 1880s.
4. Blacks gradually blended with the Portuguese through assimilation. Portuguese nationals have experienced racism and discrimination in countries
like France, Britain, Germany and the US, and even been treated as
non-whites in some contexts.
5. In 1994, it is estimated that 30-50,000 black Portuguese citizens were living in the country, mostly children of immigrants and those who obtained
citizenship after 1975. By 2002, almost half of all legally resident
foreigners (total 350,000) were Africans, 30% East European and 17% Brazilians. Asians and others were under 5%.
6. Salazar's Indigenous Code of 1954 stated that European manners and customs were necessary to acquire Portuguese citizenship rights. One had to dress in European attire, wear shoes and eat in the European way. With the collapse of authoritarian rule in 1974, Portugal hastily gave
independence to its African and Timor colonies and re-styled itself after Europe.
7. In 1981, a new law redefined citizenship in terms of ancestry and descent - favouring 'ius sanguinis' over 'ius solis'. With membership of the EU in 1986, Portugal sought a new image as a truly, modern European country.
As an EU member, Portugal had to comply with EU immigration policy and act as gatekeeper to 'Fortress Europe'.
8. Portuguese social science soon spawned a huge number of studies on immigrants and foreigners but very few on ethnic minority communities. The only officially recognised minorities are the Sintis and Roma (usually called gypsy). Statistics only distinguish Portuguese by nationality and not by cultural diversity.
9. Blacks interviewed by the researcher flatly told him that white Portuguese treated them as foreigners despite their Portuguese citizenship.
One said: "I constantly experience discrimination - social, cultural and at work. Portuguese classmates with worse grades get the job. People tell me to go back where I came from."
10. It was extremely rare to see mixed couples or truly mixed venues. Even at the university, to sit with black students during the lunch hour gave the researcher the feeling of being at the 'wrong table'. Adoption of supposedly
superior manners is still a requirement for integration or tolerance.
Desculpem o "extremínio". É extermínio, pois claro!
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