26 outubro, 2005

Evolução para um capitalismo selvagem

[continuação]

Este “admirável mundo novo”, para citar o título da famosa obra de Aldous Huxley, será tudo menos admirável quando comparado ao actual. O capitalismo selvagem, de que tanto se fala actualmente como tendência que se quer evitável a todo o custo, tem aqui plena realização. As agências de publicidade dominam a sociedade a todos os níveis, determinando o comportamento humano. O planeta Terra já pouco pode oferecer de tão exaurido que foi. Impera a indiferença em relação a um provável colapso futuro devido à sobreexploração, existindo a convicção cega de que, caso necessário, a ciência poderá criar novos “recursos naturais” para substituir os que entretanto se forem esgotando. Desencorajando-se a leitura e proporcionando-se lares de ambiente deprimente, as pessoas são induzidas a consumir freneticamente para aliviar o tédio que sentem.
A água corrente nas torneiras é salgada, já que a escassez de água doce obriga a preços só compatíveis com os quadros superiores das grandes companhias de publicidade, os quais constituem os privilegiados – com um número da segurança social baixo, da ordem das dezenas de milhão, em relação à restante população, da ordem dos triliões – de uma sociedade com um excesso populacional dramático. Este excesso populacional levou a que o conceito de habitação se tenha tornado obsoleto: a multidão de empregados nos escritórios citadinos pernoita nos degraus das escadas dos arranha-céus, alugados em cada noite; o reduzido número de habitações que ainda é construído – e que constitui o sonho de uma vida para o comum dos cidadãos – não passa de uma fina estrutura de plástico pré-fabricado. Nos dormitórios existentes as camas nunca chegam a arrefecer, pois há um esquema rotativo de dormidas em que um utente é acordado pelo outro quando chega a vez de um de ocupar o leito e de outro o ceder.
Todos os produtos consumíveis pelo ser humano são conhecidos apenas pela sua designação comercial e contêm um alcalóide simples que produz habituação e uma necessidade específica de consumir outro produto da mesma marca. É assim que a uma oferta de cigarros surge a necessidade de fumar aquela marca específica, que, por sua vez, gera a necessidade de comer um chocolate daquela marca específica, que, por seu turno, faz pensar em consumir uma bebida daquela marca específica, originando o desejo de fumar novamente um cigarro daquela marca específica, repetindo o ciclo duas ou três vezes antes de chegar à saciedade. Além do alcalóide, os anúncios publicitários – tridimensionais, com projecção de visão-sabor-cheiro-audição-sensação directamente nos órgãos sensoriais humanos – cumprem também a função de fidelizar irrevogavelmente o consumidor às marcas, a ponto de este ao pensar em fumar um cigarro, comer um chocolate ou tomar uma bebida, repetir de forma reflexa a mensagem publicitária associada ao produto que está a consumir. Ingerir comida natural, como um assado nos moldes tradicionais, tornou-se um acto repugnante.
Continuam a existir trabalhadores não especializados que se encarregam das tarefas mais árduas, com contratos de trabalho vitalícios, na prática, já que embora tenham uma duração fixa, o trabalhador não pode abandonar a companhia sem pagar as dívidas que contrair; acrescente-se que todo o sistema está montado para que seja impossível não contrair dívidas, pois os produtos são vendidos a preços exorbitantes em relação à quantidade dos mesmos que é dispensada – escassa, que gera a necessidade de obtenção de nova dose – e ao salário que se recebe. De cada vez que se adquire um produto das inúmeras máquinas de venda automática, esse produto leva inexoravelmente ao consumo de outro, que, por sua vez, leva ao consumo de um outro e, como o crédito é extremamente facilitado, a dívida cresce de forma exponencial.
Todos os produtos são fabricados a partir de compostos sintéticos de substituição de elementos naturais agora esgotados na maior parte do planeta. Alguns deles viciam instantaneamente quer pelos alcalóides que contêm quer mediante a utilização de apelos publicitários em forma de projecções subliminares e subsónicas, sendo extremamente difícil, senão mesmo impossível, a revogação do hábito. A religião tornou-se acima de tudo um negócio extremamente lucrativo, dado o pequeno investimento necessário – pois fideliza o consumidor sem necessidade de recurso a sofisticadas tecnologias para vender o produto – e o comparativamente elevadíssimo lucro – resultante da devoção conseguida, que se traduz na compra obsessiva de todos os artigos com ela relacionados, e da consequente publicidade, a custo zero, do produto pelo consumidor.
As fábricas deixaram de ter filtros nas chaminés para retenção do enxofre e dos gases industriais, porque deixou de interessar proteger a saúde dos cidadãos uma vez que a morte era muito mais lucrativa: tornou-se mais barato pagar seguros de vida que pensões; os seguros de doença movimentam muito dinheiro, pois quem passou cinquenta anos da sua vida a respirar os fumos tóxicos sabe que irá estar doente grande parte do tempo e se morrer em pouco tempo, o lucro das seguradoras é quase total; as agências funerárias também levam o seu quinhão, obtendo elevados proventos na disposição dos mortos; e, por fim, quando o consumidor ultrapassa a idade de poder trabalhar, dispõe de muito pouco dinheiro para adquirir bens de consumo, pelo que deixa de ter utilidade.
Embora continuem a existir potências como os EUA, o Governo deixou de ser uma entidade com vontade própria, gerindo o país com maior ou menor sucesso, para se tornar o órgão que dá forma de lei aos interesses das grandes agências publicitárias, não mais que um banco central de influências. O Congresso é dominado indirectamente pelas companhias de publicidade, através dos congressistas que constam das respectivas folhas de pagamento e o Presidente, destronado do lugar de vértice da nação, tem de solicitar respeitosamente uma abertura nas preenchidas agendas dos delegados publicitários ao Congresso. A política, como nunca o fora até então, tornou-se um declarado campo de batalha das agências de publicidade, remetendo para plano secundário os candidatos – ensinados, vestidos, maquilhados, ensaiados e dirigidos – que mais não fazem que debitar apelos publicitários em formato de slogans políticos vazios de conteúdo. Também mais do que nunca os aspirantes a candidatos não faltavam, pois os políticos ganhavam quase tanto como um publicitário principiante, em termos de salário base, a que acresciam diversas avenças, abonos, consultorias e afins ao longo da carreira, fazendo ascender os proventos ao nível de um executivo publicitário médio; para todos os efeitos, era um importante salto da inferior condição social de consumidor para outra em que se detinham alguns privilégios.
A política externa americana, tal como a dos outros países desenvolvidos – em termos mercantis –, pauta-se pela mais ostensiva ingerência nos destinos dos escassos e ínfimos recantos da Terra, tradicionalmente mais atrasados, que ainda não tivessem optado por abraçar os benefícios da economia de mercado, isto é, que ainda não se tivessem constituído como mais um grupo de consumidores obedientes. Para isso, recorre-se, naturalmente, ao Exército, mas os métodos empregues diferem substancialmente; as metralhadoras e os canhões foram substituídos por projecções de visão-sabor-cheiro-audição-sensação, simplesmente químicas, subsónicas ou estridentes, mas sempre subliminares, dirigidas directamente aos órgãos sensoriais onde penetram à força e os soldados foram substituídos por técnicos de publicidade e abastecimento. Os resultados são tão satisfatórios que, logo depois de terminarem as campanhas militares, as populações visadas acorrem em massa aos pontos de abastecimento desejando adquirir e consumir produtos de que, horas antes, nunca tinham experimentado qualquer necessidade, lutando mesmo entre si para os conseguirem; líderes surgem nos noticiários televisivos fumando dois cigarros, bebendo uma chávena de café e entornando metade no fato novinho em folha, tudo das principais marcas comercializadas e também tudo no espaço de vinte segundos, agradecendo profusamente terem sido libertados da “escravidão” em que viviam antes.
É este o mundo em que o capitalismo selvagem impera. Todavia, poderá surgir a dúvida sobre se será realmente esta uma evolução de alguma forma inevitável. Será possível que se possa evoluir para um sistema totalitário nos moldes tradicionais, em que o Estado ou uma oligarquia concentram em si o comando exclusivo relativamente a todos os aspectos da vida do país? É possível mas não provável, pois a História tem demonstrado que os sistemas totalitários são incompatíveis com o desenvolvimento económico. Não terá sido por acaso que os regimes de ditadura militar da América Latina soçobraram ou que a “cortina de ferro” caiu; estes regimes chegaram a um ponto da sua existência em que não conseguiam dar resposta a uma movimentação de capitais muito mais intensa.

Referências: Frederik Pohl, C. M. Kornbluth, Os Mercadores do Espaço, Mem-Martins, João Miguel Carvalho (trad.), Publ. Europa-América, 1952, colec. Ficção Científica, n. 137; Frederik Pohl, C. M. Kornbluth, A Guerra dos Mercadores, Olga Fonseca (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1984, colec. Ficção Científica, n. 138; Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Gradiva, s.d.

09 outubro, 2005

A imagem portuguesa da Índia

Há dois anos, quando entrevistei o embaixador português na Índia para o meu Supergoa.com, ele queixava-se com certa razão de que "os portugueses ainda têm a imagem da Índia do encantador de serpentes". Concordo, mas acho que o problema é capaz de ser outro. Não há imagem nenhuma da Índia.

É verdade, as miúdas que andam lá na minha faculdade na Avenida de Berna de dia e que polvilham as ruelas do Bairro Alto de noite (ou será ao contrário?) já andam de mochila, saia e blusa indiana. É verdade, a média de 600 turistas portugueses que visitavam Goa (para não falar da Índia) anualmente nos anos 90, subiu e passou para alguns poucos milhares. Poucos, sublinhe-se. E é verdade, já não só os saudosistas, salazaristas e militares a falar da distante Índia. Agora, simplesmente, ninguém fala da Índia.

Mas, no fundo, a Índia continua a ser uma imensa mancha negra no mapa-mundo português. Eu notei isso quando anunciava que lá ia, há um ano, em meados de 2004. Houve reacções de oposição e de encorajamento, mas, na sua grande maioria, as pessoas dedicaram-me uma expressão facial interrogativa enorme e desesperada. Não sabiam o que dizer. Hesitavam. Alguns refugiavam-se no discurso rebelde de que "só faz é bem, ir lá para fora", incluindo a imensidão indiana no saco-cabe-tudo do "lá fora". Outros perguntavam-me se continuaria a estar acessível por e-mail.

A Índia continua assim refém do que eu chamaria "um fosso geracional". Os mais velhos, que por lá andaram nos anos 50, filhos do Império português (que interessantemente, segundo uma tese a publicar por Francisco Bethencourt, no King's College London, nunca terá existido) estão em vias de desaparecimento, para além de estarem conotados com sectores conservadores pouco na moda. Uma geração intermédia tem claramente mais que fazer, legitimamente ou não concentrada e orientada para Bruxelas, e vive também sob o manto do trauma colonial. Finalmente, os mais novos, especialmente a geração sub-30, tende a perguntar-me como é que está a construção da barragem e a preservação das gravuras rupestres quando lhes falo em Goa. Há que redescobrir a Índia, parece-me.

Perdoem-me o meu tom que pode parecer censurador. Mas eu mesmo hesito muitas vezes. Fazem-me crer que sou um Fernão Mendes Pinto do século XXI, mas na realidade não sou mais do que um estudante internacional em mobilidade. Mobilidade contra a corrente? Nem por isso. Uns 3000 km acima de nós a maioria dos escandinavos tiram pelo menos um ano depois do secundário para viajarem pelo mundo não-ocidental ou para fazerem estágios no apoio ao desenvolvimento nos países que muitos dos meus colegas chamariam "os mais encavados". Nova Deli capital terceiro-mundista? Nem por isso. O que iriam para lá fazer tantos chefes-de-estado nestes últimos meses, a não ser negociar contratos de investimento, aumento de "green cards", programas de intercâmbio e pacotes de armamento?

Algo está a mudar. Eu nem proponho a discussão sobre como nos devemos relacionar com o que há de novo a Oriente. Sugiro, simplesmente, que se começe por reconhecer que há algo de novo. Esse é o primeiro passo. Conhecer, partir pedra, seja pela leitura ou pela deslocação física. Quebrar os conceitos e as fronteiras geográficas e mentais que ainda aprisionam a visão do mundo portuguesa. Que Portugal se oriente novamente, autonomamente.

Mas há mudança. Contrastando com o enorme vácuo de há um ano, as pessoas que me encontram agora já dizem algumas banalidades. Normalmente comentam que a Índia "tá em grande nas tecnologias da informação e nos computadores e nisso tudo", claro que nunca deixando de fora o comentário mais ou menos jocoso (depende se estou no Rogel saloio com o meu mecânico ou com um licenciado em Lisboa) que "eles também são mais que as mães / são marrões / são inteligentes e trabalhadores". E o comentário bónus é sobre a questão militar porque "eles têm capacidade nuclear" e depois vêm umas palavras complicadas como "proliferação" ou banais como "ainda nos caem as bombas na cabeça".

E há também leve mudança porque vejo que entre as gerações mais novas de portugueses – mesmo que décadas em atraso comparativamente às suas congéneres europeias – já há mais pessoas a abrir os olhos e a fazer as malas, explorando as manchas negras do nosso mapa-mundo que em tempos foi o melhor do planeta.

Adaptação de texto original em http://avidaemdeli.blogspot.com