06 julho, 2005

RECORDANDO O POETA VEIGA LEITÃO

Os anos vinte e trinta do século XX europeu foram marcados pelos regimes fascistas: o italiano, com Mussolini, desde 1923; o português, anunciado com a ditadura militar instaurada em 1926; o alemão que foi sem dúvida o que maiores marcas deixou; finalmente, depois da Guerra Civil de Espanha, o de Franco. Ora se aceitarmos a tese de que as vivências humanas e a forma do Homem ver o Mundo informam inevitavelmente as formas de representação e produção artística, compreende-se facilmente que aquele contexto político, sem dúvida adverso, ao qual poderiam ainda acrescentar-se os efeitos da crise económica de 1929, tenha influenciado a produção literária.

Fiquemos pelo Portugal da terceira década. Com a Constituição de 1933 e toda a legislação superveniente são proibidos os partidos políticos; os sindicatos ou qualquer forma de associação batiam no escolho da organização corporativa, ela própria, em nome do centralismo estatal, cerceada até ao final da década de cinquenta. Mas nem a censura , a polícia política , as prisões e o degredo abafaram uma parte da classe intelectual que, associando-se às classes mais desfavorecidas, sobretudo às rurais, teceu, de uma ou outra forma, sérias críticas aos poderosos círculos do capital bancário, agrícola, industrial e colonial. Na literatura, o autor - sem dúvida marcado por referências ideológicas mais ou menos próximas do marxismo e do materialismo histórico - sintonizado com os problemas e realidades económicas, sociais e políticas do seu tempo, ultrapassa o plano da criação estética e procura denunciar o desfavorecimento de uma classe social face à decadência e corrupção dos estratos dominantes. Ilustrativo desta ideia é a afirmação de Alves Redol em Gaibéus: «Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documento humano fixado no Ribatejo. Depois disso será o que os outros entenderem.»
A literatura é assim preenchida por um envolvimento histórico e social, inserido numa cultura de oposição que, no início da década de quarenta, vem a público com o aparecimento de duas colecções de livros: o Novo Cancioneiro, orientado para a poesia, a os Novos Prosadores, dedicado à ficção. Surge desta forma a chamada corrente neo-realista.
Mas novo em relação a quê? Novo em relação às correntes anteriores, sobretudo o Realismo do século XIX. Novo também porque é a transposição para a arte de uma nova forma de conhecer e se posicionar perante o Mundo. No entanto, a utilização do prefixo “neo” não significa que tenha havido um corte tão radical quanto poderia parecer à primeira vista; relativamente à Geração de 70, a novidade diz essencialmente respeito à postura ideológica. Com efeito, nem o neo-realismo convoca qualquer aproximação ao socialismo utópico, nem as vítimas aparecem envoltas numa auréola de glória. Agora, o Homem, autor ou personagem, assume um papel determinante e uma capacidade de intervir numa sociedade que se considera decadente, ou seja, o conhecimento do mundo exterior faz-se acompanhar de uma compreensão transformadora. Note-se que a Geração de 70, não encontrando soluções adoptou uma atitude de resignação.
Nos dois realismos existe a intenção de representação do real; o que muda é o alicerce ideológico, aspecto que, inevitavelmente, como qualquer obra literária comprometida ideologicamente e, por isso, interventora, informa as opções temáticas de um e de outro. Assim, se no realismo encontramos temas como o adultério, a ambição, a crítica de tipos sociais burgueses, etc., no neo-realismo as preocupações estão mais ligadas ao proletariado e à sua condição económica, à consciência de classe, à opressão económica ou política, etc.

A literatura, mesmo como fenómeno de criação estética, pode ser categorizada como forma de conhecimento, ainda que os seus processos de designar ou apreender o real sejam diferentes dos da ciência; mais, pode mesmo afirmar-se que, recorrendo a formas de expressão simbólicas correspondentes também a uma posição de conhecimento, procura ou tem por objecto uma realidade que a ciência não toca ou, pelo menos, não esgota.
É esta realidade que encontramos nos textos de meados do século do poeta Luís Veiga Leitão, notoriamente influenciados pelo neo-realismo de intervenção política.

Pseudónimo de Luís Maria Leitão, Veiga Leitão nasceu em Moimenta da Beira em 1915. Concluído o curso dos liceus, dedicou-se, depois de ter sido demitido de escriturário da Federação dos Vinicultores da Região do Douro, por ser contra o regime, à actividade comercial no ramo dos produtos farmacêuticos. Dois anos depois de publicar o seu primeiro livro de poesia (1950), Latitude, é preso por motivos políticos em Caxias onde escreve os textos aqui antologiados que viriam a ser publicados em 1955 sob o título Noite de Pedra. Em 1967, para como muitos outros evitar nova prisão, exila-se no Brasil de onde regressará, para viver no Porto, em 1976.
Nos textos que frequentam Noite de Pedra podemos encontrar elementos descritivos de uma situação vivida pelo poeta numa situação concreta: a prisão em Caxias. Mas de um universo fechado e hostil, inscrito em «Noite de Pedra», a escrita, no texto «A uma Bicicleta Desenhada na Cela», encaminha-se para outras realidades que, por afirmação de uma vida interior, convocam a liberdade.

NOITE DE PEDRA[1]

Noite de pedra

Cerração de muros
arames farpados
grades de ferro
cruzes de ferro
nas campas rasas
duma luz morta

E a lua os cornos da lua
uma baioneta calada

Noite de pedra noite forjada
- para que o silêncio esmague
o coração dos homens



A UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA[2]

Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.

Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...

Bem haja a mão que te criou!

Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.






[1] Luís Veiga Leitão, Longo Caminho Breve. Poesias Escolhidas. 1943 – 1983, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, p. 47.
O título que aqui se insere destina-se apenas a individualizar o poema, uma vez que no texto original ele é identificado apenas pelo primeiro verso.

[2] Op. cit., p. 70

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