Hoje parecia uma gaja, aos olhos de quem olhava para mim, no trânsito. Dentro do meu carro arranjava as unhas com o meu multifuncional canivete suiço comprado no Brasil, sem me aperceber do acto menos másculo. Quando vi um homem, dentro do seu veículo, num semáforo, a olhar insistentemente para as minhas mãos, e para os meus gestos abichanados, apercebi-me da figura que estava a fazer. Claro que não me importei com ela, a figura, mas depois, quando percebi que a música que dava na rádio era da Luso-canadiana Nelly Furtado , senti-me um pouco agayolado e apressei a manicure que há em mim e o indicador direito lá ficou menos bem limado.
Fim da partilha com o leitor.
Vamos agora à história:
Oufkir: este nome não me sai da cabeça há uns 4 dias. A primeira vez que ouvi falar deste nome foi em 2001. A filha de um oficial da Royal Marrocain Air Force (RMAF), na reserva, foi a primeira a contar-me que tinha havido um atentado a Hassan II, era ela pequena, e que o principal responsável pelo sucedido havia sido exemplarmente punido. Era o General Oufkir. O edifício de uns 5 andares, que havia suscitado a minha curiosidade inicial, situado na zona da praia, Casablanca, e não muito longe da 2ª maior mesquita do mundo, tinha (e ainda terá) um aspecto inacabado, velho, e contrastava com as bonitas vivendas situadas naquele bocado priveligiado de Casablanca. O bâtiment, como lhe chamou a filha do oficial da RMAF, havia sido da família de Oufkir, outrora poderosa e próxima à família real, mas que caíra em desgraça. Depois do atentado, Hassan II, depois de "tratar" do traidor principal, o general Oufkir, promoveu perseguição impiedosa aos restantes membros da família. O prédio, então em construção, ficou ali como um aviso aos que possam eventualmente pensar em atentar contra o rei.
A mensagem é forte, sem dúvida. Quando a filha do oficial me contou aquilo preparava-me para lhe colocar mais questões sobre o assunto, mas a Gendermerie Royal aproximava-se. Nos tempos de Hassan II, a Gendermerier Royal não se coibia em procurar receber um dinheiro extra, sobretudo dos incautos motoristas. Eu e a filha do oficial éramos fortes candidatos a esses pagamentos, porque estávamos dentro dum carro, ás 6 da manhã. Mas, sobretudo, porque éramos um homem e uma mulher dentro dum carro de matrícula estrangeira. Homem e mulher juntos só se forem casados ou então da família, senão estão em falta com a lei.
A partida à pressa fez-me esquecer Oufkir por momentos, mas, chegado a Lisboa, procurei informações e descobri um livro de Malika Oufkir, onde conta tudo o que podemos querer saber sobre o que aconteceu em 1972 e nos anos posteriores, de perseguições e o terror vivido pela família Oufkir.
Em resumo, a história: Malika e irmãos tinham uma vida de príncipes, vivendo no Palácio Real, convivendo diariamente, brincando com os filhos do Rei (entre os quais o actual Rei, Mohamed VI). O pai, o General Oufkir, era o braço direito de Hassan II. Em 1972, por motivos que não cabe aqui referir, tudo muda, por causa do atentado: o General suicida-se (segundo algumas versões), e Hassan II faz prisioneira a família do traidor, confisca todos os seus bens, encarcera-a, sobretudo em prisões no sul do país. Dos palácios para as prisões do deserto, eis a triste sina da família Oufkir. O assunto foi tabu durante muitos anos. O regime de Hassan II endureceu e a família desapareceu. Passados cerca de 20 anos, um dos Oufkir conseguiu fugir e contar o que se passava a um jornalista estrangeiro. As pressões internacionais sobre HassanII começaram a fazer-se sentir, o que o obrigou a libertar a família, após tantos anos de suplícios.
E eu ali estava, em frente a um verdadeiro monumento histórico, o prédio de Oufkir, em frente à praia, com a filha de um oficial da força aérea, na reserva, a quem Hassan II havia um dia presenteado com várias casas por serviços prestados (sabe-se lá se não tinha sido protagonista naquele atentado, ao lado do rei, claro está). Ah, como gostava de falar com o homem, de entender que papel tinha tido nesses quentes dias. Mas a minha posição não era muito confortável, a mãe já sabia que a filha tinha um caso comigo, o irmão era um enorme e radical islãmico, daqueles com a barba comprida, e eu achava que não me deveria arriscar uma entrevista, ainda por cima sobre um assunto tão delicado. Se o pai tivesse suspeitado da coisa, talvez eu não estivesse aqui hoje, talvez tivesse sido obrigado a casar, eu que nem divorciado estava!
Talvez até, com as minha perguntas indiscretas, fosse levado para a esquadra da policia política, onde me sujeitariam a um interrogatório, como me aconteceu 10 anos antes, por ter tirado uma fotografia a uma esquadra de polícia, nos arredores de Casablanca.
É por estas e por outras que quando me falam do filme Casablanca eu respondo: qual dos meus filmes em Casablanca? Aquele em que vivi 4 meses num bairro pobre da periferia?; ou aquele em que tive um caso com a filha do oficial na reserva e fui com ela para a minha tenda, depois de "comprar" o guarda do parque de campismo porque não nos deixavam entrar em hoteis porque não éramos casados?; ou ainda o do meu casamento, da minha conversão ao islamismo, no mês de ramadão religiosamente cumprido? A qual dos filmes se referem?