20 outubro, 2008

SÉ DÁ DÓ...

Não, não se trata de um título de uma música dos Abba. São três palavras que formam uma frase. Acrescente-se o artigo "A" no início e temos A Sé (freguesia do Porto) DÁ (verbo-3ªa pessoa do verbo dar) DÓ (do latim dolu-sentir dor; pena, em português trivial).
Não me vou referir a nenhuma degradação de monumentos; não vou apontar a desertificação preocupante que o Porto tem vindo a sofrer.
Quem anda pela Rua Escura, pela Bainharia, e até mais "cá em cima", pela Batalha, não pode deixar de reparar nos habitantes da Sé, pelo seu aspecto medieval.
Nos tempos medievais, nomeadamente, e mormente, em períodos de fome, o povo andaria sujo, mal vestido, dentição precária, cabelos desgrenhados, imundos. Muitas pessoas coxeariam, tal a ausência de cuidados médicos e consequentes mazelas. Partir uma perna poderia significar ficar a coxear para toda a vida. Uma cárie, que deveria começar em tenra idade, tal a falta de conhecimentos, informação e meios para cuidar dos dentes, significaria, mais tarde ou mais cedo, menos um dente. Imagino a quantos não faltariam dentes, imaginando até que poucos teriam mais de 4 ou 5, e mesmo esses a sangrar e a querer cambalear na gengiva. As unhas sujas, partes íntimas nauseabundas, pés com quantidades generosas de "sulfato", traduzindo reações químicas inimagináveis e cheiros de odor forte, mas não incomodativo, tal a coerência de comportamentos existente nessa época.
Na Sé, as pessoas na Idade Média já deveriam gritar umas com as outras, acto tão próprio de quem nasce a ouvir os familiares e vizinhos a gritar. Não havia internet nem telefone e gritar seria um bom meio de fazer passar a menssagem, mesmo de quem estivesse no cimo da muralha fernandina e quisesse falar com o primo, mais próximo da Sé Catedral. Não conheço nenhum estudo sobre os palavrões, se são coisa recente, se antiga (O Prof. Alfredo Margarido diria, a este propósito "está por realizar a monografia do palavrão"), mas imagino um povo imundo e sem dentes a dizer muitos palavrões, que substituíam expressões de mais difícil pronúncia, de maior dificuldade vocal ou, de inverso modo, desconhecimento de palavras que substituíssem os milenares, tradicionais e familiares palavrões.
Aqui um parêntese para observar que talvez a ausência de dentes, sobretudo nos meios mais pobres, mas não só, pode até ser responsável pela pronunciação continuadamente errada de certas palavras, podendo até dar-se o caso de alterações definitivas de pronúncia ao nível popular. Já para não referir alterações profundas no linguajar. ( o Prof. Margarido diria "está por fazer um estudo sobre a influência da ausência de dentes nas alterações da pronúncia").
Gente pobre, que comia o que havia, e quando digo "o que havia" não digo sardinha enlatada em vez de salmão; não digo pão com manteiga em vez de pão com bife; não digo maçã em vez da cara e longínqua manga.
Passados tantos séculos muitos destes pontos mantêm-se. Mesmo que fossem excepções, poderia falar-se nelas como reais, tradicionais, mas, sobretudo, dramáticas, com características de triste fado. Mas não, não são excepcionais, são muitas, visíveis, audíveis, perceptíveis, cheiráveis (olfactáveis?).
A Sé dá dó, com os seus habitantes sujos e coxos, com espaços no lugar dos dentes, com as mãos sujas, de saco de plástico nos braços, sapatos velhos, corcundas Os mais novos, de pulmões ainda vigorosos, a insultarem os filhos, insultando-se muitas vezes, não sei se por engano, a si próprios e aos pais das crianças. Melhor vestidos, por vezes, mas ainda assim, e sempre, com qualquer marca própria, típica de gente pobre há gerações.
Todos fomos um dia pobres, isso é certo, mas estas gerações da Sé do Secs. XX e XXI pararam no tempo um dia. Alguns mudaram-se, uns levando com eles as tradições milenares, transportando-as para outras regiões e com eles o linguajar, os modos grosseiros, mas talvez já não a roupa suja e os dentes tão podres; outros deixaram os dentes podres na Rua Escura, entrando no progresso, rumo a uma globalização que teima em afastar-se da Sé.

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